Um dia em Gaza

O pequeno Ahmad acordou em meio às ruínas de uma antiga escola. Ele e outras crianças gostam dali porque o que restou das paredes ainda têm cores e figuras infantis. Ainda era cedo, não passava das 6h, mas a fome apertava e doía na barriga. O frio da noite havia sido abrandado pelos cobertores e pelo calor dos outros meninos que dormiam próximos a ele.

O cenário era de guerra, ou melhor, de massacre. Furos na parede, prédios destruídos. Até mesmo a pavimentação das ruas deixou de existir. Ahmad anda descalço e sente falta da irmã que cuidava dele até o último bombardeio. Ainda lembra de como Islam o apertava enquanto ele fechava os ouvidos com força. Também recorda com tristeza a forma como ela foi ficando cada vez mais fria, até perder as forças.

A mãe e o pai deles já haviam morrido havia um ano, na segunda vez que tentavam fugir do norte de Gaza. Desde aquele dia, sempre que vê bilhetes caindo do céu, entra em pânico. No abrigo onde tem passado as noites, Ahmad e outras crianças são cuidadas por alguns adultos que se uniram para tentar lhes dar conforto e um pouco de segurança.

Mas, durante o dia, os meninos maiores, como Ahmad, que acaba de fazer oito anos, afastam-se para procurar comida. Alimentos por ali são raros nos dias de hoje. A cidade toda está faminta. Há pessoas caídas pelas ruas e sem força sequer para levantar.

Ahmad entra numa multidão que parece estar recebendo comida em algum ponto. A poeira e grande volume de pessoas maiores que ele não permitem a aproximação dele. Com medo de ser pisoteado, ele recua. Vê um monte de escombros e resolve subir para tentar descobrir o que há no meio daquela confusão.

São milhares de pessoas cercando um caminhão que, aparentemente, distribui farinha. Os sacos grandes, industriais, são fracionados em pequenas sacolas menores e entregues aos desesperados. O menino percebe que não tem chance de se infiltrar naquela turba para pedir comida.

Toma outra direção e segue sem rumo definido. Espera, na ingenuidade infantil, achar algum lugar que ninguém tivesse notado ainda e que estivesse cheio de comida. Já faz dois dias que não come nada. No abrigo, apenas água suja de farinha.

Ao longe, vê cães pulando, parecem brincar. Aquela aparente alegria chama sua atenção e o atrai. O local é afastado, não tem outras pessoas. Ahmad segue o caminho por entre pedras e restos de prédios. E, após passar por alguns carros queimados e subir numa laje, percebe que os cães estão, na verdade, disputando um pedaço de carne. Carne humana. Em uma área aberta, alguns corpos iniciam a decomposição expostos ao tempo.

A criança se choca, quer chorar, sente as ânsias, mas não vomita por pura falta de conteúdo estomacal. Pensa em se esconder. Ficou com medo dos cachorros. Mas percebe que não há o que esperar. Ninguém vai vir buscar ele. Assim, volta tropeçando e em ritmo acelerado daquele lugar.

Sem pensar muito e sem ter a quem recorrer, Ahmad entra na multidão ensandecida pela fome. Vai se esgueirando por entre as pernas das pessoas. É chutado, apertado, quase pisoteado até que uma mulher percebe o menino sendo vencido pelo cansaço e o pega pela mão. Os dois juntos seguem furando a massa compacta de pessoas que tentam alcançar o caminhão antes que a farinha acabe.

Eles conseguem. Finalmente estão frente a frente com a comida. Recebem uma porção. Ahmad não espera e enfia a mão na sacola e, em seguida, a farinha na boca. Crua, como estava. A mulher, que o ajudara, o contém e diz para saírem dali e dividir o produto.

Ela quer saber se ele tem onde ficar e se oferece para fazer pão para ambos. O menino concorda. Precisam apenas sair da multidão e voltar para o abrigo. Eles começam lentamente a se movimentar, mas o saco de comida os deixa mais lentos.

O caminho é interrompido ao som de tiros seguidos de um grande corre-corre. Um jipe militar surgiu por trás do caminhão de ajuda humanitária e soldados passaram a disparar contra as pessoas. Foram muitos tiros. Os dois correm, mas acabam caindo. Ahmad, agora deitado abraçado à farinha, vê sua nova amiga suja de sangue. Foi baleada. Essa foi sua última visão antes de ser pisoteado. Martirizado.

 

*Crônica ficcional baseada em milhares de casos registrados na Palestina e
publicada originalmente na edição de 23 de julho de 2025 do jornal A União.

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