Visceral

O modelo austero de governança considera toda saída de recurso um gasto. Toda economia, um ganho. Trilhando esse caminho, os governantes mais liberais adotam medidas para garantir que todos os recursos gerem retorno financeiro transformando, assim, o orçamento em ações sociais em um “ralo” de dinheiro público que deveria, segundo eles, estar sendo reinvestido em alguma área que trouxesse dividendos.

Tratam as contas públicas como uma aventura de “day trade”, em que o dinheiro está à disposição para aplicações, compras de ações e novos “aportes” a qualquer tempo. Nem que para isso precisem vender estatais centenárias que, sob seus olhares, estão sempre no vermelho.

Ora, que empresa privada investiria na instalação de saneamento básico, distribuição de água potável ou mesmo eletrificação de áreas pouco populosas ou sem grande indústrias que pudessem trazer lucro? Apenas o Estado faria tal coisa ao preço de arcar com o prejuízo “apenas” para garantir os direitos de alguns cidadãos.

Educação e Saúde também são extremamente caros e dispendiosos para o estado na visão dos agentes do estado que são contra o “inchaço da máquina do estado”. Para eles, o estado deve ser mínimo e o mercado é que deve regular tudo. Inclusive o preço da água e do combustível em meio à uma calamidade.

O Rio Grande do Sul está vivendo a falta de estado. A mão do mercado, antes invisível, agora se mostra em riste e de punho fechado contra a população gaúcha alagada e afogada por falta de políticas públicas que minimizariam ou evitariam grande parte desta, agora, tragédia anunciada há anos.

Eduardo Leite e sua provável idolatria por economistas liberais estadunidenses reduziu os investimentos (para ele gastos perdidos) da Defesa Civil de milhões de reais para meros R$ 50 mil em dois anos. Justamente nos anos em os pesquisadores (aquelas pessoas que trabalham em universidades com cada vez menos bolsas e patrocínios) já alertavam que as chuvas seriam anormais, muito maiores do que o costumeiro.

Foi também sob o governo ou influência do tucano que regras ambientais foram flexibilizadas para priorizar o lucro de empresas privadas. Não é coincidência que o Pix usado pelo Governo de Eduardo Leite para receber doações seja vinculado a uma empresa particular, não ao Estado. “A empresa tem melhor condições de gerenciar e destinar esse recurso”. Balela!

Em todo o RS, 397 de 497 municípios foram atingidos pelo desastre climático. A tragédia já causou 90 mortes e deixou mais de 130 desaparecidos até a manhã de ontem. O número de feridos passa de 360. Há mais de 200 mil pessoas fora de casa. Desse total, são 48,8 mil em abrigos e 159 mil desalojados. Em algumas cidades a água ainda não parou de subir.

Mas o próprio Eduardo entende que apenas um estado forte pode fazer determinadas coisas. O pedido de socorro ao Governo Federal é semelhante ao do filho que perde tudo no “day trade” ou em apostas eletrônicas do tipo “bet”: ao quebrar, se garante com o apoio dos pais. Um moleque irresponsável, afinal.

Na governança pública não pode haver mais espaço para molecagens e irresponsabilidades desse tamanho. Os cidadãos não podem ficar à mercê da boa vontade do mercado ou do heroísmo de vizinhos. Cada pessoa morta, cada bebê afogado no virar de uma canoa está na conta do governador do Rio Grande do Sul.

 Foto: reprodução da TV SBT

* Texto originalmente publicado no jornal A União em 8 de maio de 2024.

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