Criança.PB dá dez dicas para uma cobertura jornalística qualificada

Antes de partir para o texto da ONG Criança.PB, quero dizer que fiquei muito feliz por, enquanto jornalista, já cumprir essas regras sugeridas pelo menos desde que passei a ser editor. As dicas parecem óbvias ao primeiro olhar, mas quem está numa Redação sabe o quanto é difícil lutar contra comunicadores que usam o senso comum como principal conselheiro e vêem a máxima audiência como único motivo de suas publicações/exibições.

Agora, segue o texto do Criança.PB:

A cobertura jornalística de assuntos relacionados a adolescentes envolvidos em atos infracionais é delicada e, muitas vezes, reproduzida apenas como um problema de segurança pública, dentro da dualidade “infração-repressão”. Apesar disso, para que esse trabalho seja qualificado e significativo para a sociedade, é necessário que as reportagens vão além do mero Boletim de Ocorrência policial. Mas, por quê?

A mídia tem um poder imenso. É formadora de opinião e, nesse sentido, é capaz de criar uma consciência social sobre um determinado assunto. E o que isso influencia? Influencia no sentido de que, ao apenas reproduzir fatos da esfera criminal envolvendo esses jovens, só são aprofundados o preconceito, a histeria coletiva e a verdadeira aversão aos adolescentes que, por um dado motivo, foram autores de um delito. Podemos nos perguntar: e o que ganhamos se fizermos diferente?

Da mesma forma que, em geral, a imprensa obtém sucesso após questionar aumentos no preço da gasolina e dos alimentos, ou cobra melhorias na infraestrutura de um bairro específico, pode-se também obter êxito no questionamento e na implantação de políticas públicas, para que essas crianças e adolescentes não tenham seus direitos violados e cometam, dentro de um determinado contexto, qualquer ato infracional.

O que se pode fazer, então? Começam aqui as dicas básicas para que tentemos transformar esta realidade, baseadas nas discussões levantadas durante o seminário “Direitos em Pauta: Imprensa, Agenda Social e Adolescentes em Conflito com a Lei”, promovido pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância, em Brasília.

1) Não use expressões como “menor” , "infrator" e "crime"


Por muito tempo no meio jurídico, circulou a expressão “de menor” ou “menor”, inclusive para nomear delegacias, que antes se chamavam “Delegacia do Menor”, e o próprio Código de Menores, antecessor do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Para especialistas na área, entretanto, o consenso é que essa expressão é pejorativa e simplista, tendo em vista que não personifica o indivíduo e lhe dá um tom de inferioridade e incapacidade. O correto seria “adolescente” ou sinônimos, como "garoto", "menino" ou, no último dos casos, "menor de idade". A denominação "criança" se encaixa apenas para aquelas com até 12 anos.

O termo “infrator”, por sua vez, tem igual carga negativa, por isso é preferível que se use “adolescente envolvido em ato infracional” ou “em conflito com a lei”. Também não se deve usar o termo "crime": o ECA considera que a população abaixo dos 18 anos está em desenvolvimento, assim, ao evitar a palavra "crime", o repórter contribui para que a sociedade entenda que o jovem, por estar em formação, tem oportunidade de aprender com o erro. No mesmo sentido, em vez de "pena", use "medida socioeducativa"

2) Não use a “tarja preta”

Também utilizada por bastante tempo, a tarja preta na altura dos olhos acabou se transformando em sinal de estigma. Prefira o desfoque (com cuidado para não identificar o adolescente, conforme apontaremos mais adiante), ou qualquer outro artifício editorial, como o enquadramento parcial.

3) Adolescente é punido sim, de acordo com legislação própria

É um erro pensar que os adolescentes não recebem quaisquer punições, quando pegos em atos infracionais. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê uma série de medidas socioeducativas, que começam com uma advertência e chegam até a internação, que é a última medida a ser adotada, para delitos violentos ou sob grave ameaça. Para os demais, existe a prestação de serviços à comunidade, a reparação do erro, a semiliberdade e a liberdade assistida, que são supervisionados por órgãos como os Centros de Referência da Assistência Social (Creas). Vale lembrar que as punições devem corresponder às de um adulto. Confira a opinião de um especialista aqui.

4) Vá além do Boletim de Ocorrência


Todos sabemos que tempo em televisões e rádio são raros, da mesma forma que espaço para jornais impressos e mídias digitais. Contudo, para que a mídia seja uma aliada na garantia dos direitos de crianças e adolescentes, o recomendado é que se vá além do Boletim de Ocorrência. O lead mantém-se o mesmo, afinal, o ato infracional é o “gancho” jornalístico. Mas, por que não problematizar a questão? O que houve com o garoto, para que ele cometesse tal ação? Como vive a família dele? O que falta em sua casa? O que os governos não lhes ofereceram? Esse adolescente estuda? Se não estuda, por quê? Por que não quer, ou por que a escola não funciona? Precisamos entender que os adolescentes não cometem atos infracionais simplesmente por cometerem. Conforme aponta o juiz da Infância e da Juventude de Caxias do Sul, Leoberto Brancher, o ato infracional é como se fosse um chamado de escuta, um grito de socorro dado pelo adolescente, para que alguém preencha as lacunas deixadas em seu desenvolvimento. Humanize sua matéria.

5) Leve em consideração o contexto

Paute a questão social em suas matérias. Que o adolescente cometeu o ato infracional, não há dúvidas, mas problematize a questão envolvendo as deficiências da comunidade, para gerar questionamentos, que funcionarão como cobranças. Não adianta que o garoto seja interno em uma unidade, sem que haja quaisquer melhorias na comunidade de onde ele vem. Ao sair, ele estará exposto ao mesmo ambiente que o levou a cometer tal ação. Lembrando que o artigo 227 da Constituição Federal já determina: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Cobrar é, portanto, um direito de todos nós!

6) Cuidado para não identificar o adolescente

Apesar da importância de se humanizar as matérias, cuidado! O artigo 143 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) diz que é vedada a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional. Isso significa que fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco, residência e, inclusive, iniciais do nome e sobrenome não são permitidas. Faça tudo isso sem citar nomes, fazer fotos ou dar possíveis “dicas” que permitam seu reconhecimento. O objetivo é não estigmatizá-lo, para que seja possível sua reintegração à sociedade posteriormente. Da mesma forma, um garoto que já tenha cumprido a medida socioeducativa também não pode ser identificado.

7) Polícia não é fonte suficiente

Ao produzir as reportagens, trabalhe com mais de uma fonte. A Polícia Militar, embora seja o primeiro a se ouvir para entender o caso, não deve ser a única. Ela só poderá falar sobre o que é de sua competência: a repressão. Procure as secretarias de Desenvolvimento Humano e Social, da Educação, da Cultura, o Ministério Público e as Varas da Infância, afinal, todos esses atores têm obrigações com esses adolescentes.

8) Traga o ECA para o conhecimento do público

Falamos o tempo todo de Código do Consumidor, de Código de Ética, mas quase não se fala em Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa, em julho deste ano, 22 anos. O ECA contém todos os direitos que devem ser assegurados a crianças e adolescentes, bem como as medidas socioeducativas que deverão ser aplicadas, em caso de ato infracional. Trabalhe esses artigos! Discuta o que se está faltando, o que se está errado, o que deve ser mudado. Suscite a discussão, ou a população continuará sem cobrar mudanças, rendida ao binômio “infração-repressão”, que é ineficaz, tendo em vista que os problemas continuarão a existir.

9) Entenda: adolescentes ricos são iguais a adolescentes pobres

Não trate com diferença dois atos infracionais envolvendo dois adolescentes de classes sociais diferentes. Ambos têm os mesmos direitos. Havendo violação de algum deles, represente isso de forma igual: família, sociedade e governo falharam em sua efetivação. Ninguém está fadado ao fracasso por não ter boas condições econômicas. Cobre, denuncie, paute. Um garoto envolvido com o tráfico de drogas o fez, porque o Estado em todas as suas esferas deixou lacunas que permitiram o avanço da criminalidade.

10) Também paute boas pautas

Embora comercialmente menos atraentes que as “más pautas”, as boas são fundamentais para que a sociedade assuma uma nova postura diante de adolescentes em conflito com a lei. Criar uma agenda positiva em vez de uma histeria coletiva é um dos caminhos para que se cobrem mais políticas públicas que atendam cada vez mais jovens, evitando, assim, o envolvimento com a criminalidade. Da mesma forma, para os próprios garotos, ver que seus esforços estão sendo divulgados também funcionam como uma injeção de ânimo, possibilitando a reconstrução de planos para o futuro. Na perspectiva da sociedade, ver que iniciativas têm salvado vidas também são mobilizadoras.

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